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REGRA POLÊMICA
Ponderação no novo CPC tem várias opções e não segue método específico
13 de junho de 2015, 7h30
Por Rodrigo Meyer Bornholdt
Das possibilidades da ponderação no novo CPC e de sua não vinculação a um método específico
Da ponderação como álibi e de sua ambiguidade
Algumas duras reflexões a propósito da referência à ponderação no novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/15) surgiram recentemente.[1]
De nossa parte, há quase uma década denunciávamos o modo como a ponderação constituía, no Brasil, antes de um efetivo instrumental metódico, um simples argumento retórico, ensejador de um franco decisionismo judicial, resvalando para a perpetração de arbitrariedades. [2]
E que, mesmo na Alemanha, o argumento da ponderação encobria, no mais das vezes, ou igualmente um artifício para o decisionismo judicial; ou um trabalho metódico que tomava-a efetivamente como último recurso, mas apenas após um longo proceder dogmático que buscava desvelar as particularidades de cada direito, princípio ou bem jurídico envolvido.
Apresentou-se ali também que, por consequência, o conceito de ponderação transcendia a construção teórica de Robert Alexy.
Baseando-nos na teoria estruturante do direito, de Friedrich Müller, com os adendos de Ulli Rühl a esse tema específico, por certo que adotamos postura bastante crítica com relação à conveniência ou necessidade de adoção do instrumental da ponderação em nosso país.[3]
Contudo, vistas as coisas a partir dessa perspectiva, justificada e acrescentada pelas razões abaixo elencadas, não é de todo desajustada a inserção do referido § 2o no art. 489 do novo CPC. Para tanto, é necessário um adequado trabalho dogmático de compreensão e delimitação de sua aplicabilidade, visando a afastar determinadas pré-compreensões (e.g., uma automática vinculação à teoria dos princípios de Robert Alexy) que cingem suas possibilidades e os cuidados para com sua exegese.
Da exigência de ponderações no Novo CPC
Da gênese do dispositivo
Dispõe o art. 489, § 2o, do Novo Código de Processo Civil:
“No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.”
Esse texto sucedeu, por ter matéria assemelhada, ao decorrente de Emenda do Deputado Eduardo Cunha, que dispunha:
Art. 472…………….
Parágrafo único. Fundamentando-se a sentença em regras que contiverem conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor, analiticamente, o sentido em que as normas foram compreendidas, demonstrando as razões pelas quais, ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.
Cabe reconhecer que a redação anterior era, conquanto também equivocada, mais elegante e de mais fácil compreensão que a atual. O texto exigia claramente fossem analisadas as peculiaridades do caso concreto, em vez de fazer ambígua referência às “premissas fáticas” ensejadoras da conclusão. Além disso, conferia um plus à exigência constitucional de fundamentação das decisões, de resto contempladas na redação final do § 1º do art. 489, na medida em que: a) referia as três figuras em que o espaço para a discricionariedade judicial tende a ser maior (conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais ou princípios jurídicos); b) exigia uma exposição minuciosa por parte do magistrado.
Direitos, princípios e bens jurídicos não são valores
A redação era infeliz, contudo, quando exigia fossem ponderados “os valores em questão”. Ora, mesmo na Alemanha, em que o Tribunal Constitucional Federal equivocadamente (e muito mais num sentido retórico[4]) cunhou a expressão “ordem de valores”, tal alusão foi melhor substituída pela (também insuficiente) referência a princípios.
O Direito lida com direitos, princípios e outros bens jurídicos. Subjacentes a essas figuras existem valorações, mas elas constituem algo diverso dos valores. Ao adentrarem o mundo jurídico, os valores transformam-se em outra coisa. Como já referimos em outro lugar, com base em Friedrich Müller, as valorações servem “para a seleção e ordenação dos critérios materiais que comporão a estrutura do âmbito normativo.”[5] As valorações, pois, informam o conteúdo de direitos, de princípios e de outros bens jurídicos. Porém, com eles não se confundem.
Dentre outras razões porque, como já alertava Carl Schmitt, os valores exigem um tudo ou nada. São absolutos. Não admitem conciliações. “…lo específico del valor radica justamente en que este, en lugar de tener un ser, solo tiene validez. La posición de valores es por consiguiente nula si no se impone… Quien dice valor quiere hacer valer e imponer.” E, mais adiante: “Quien pone valores ya confronta con los no-valores.”[6] Considerar os bens jurídicos como meros valores significaria admitir a ponderação, em abstrato, de um valor contra o outro. Prevaleceria assim a mera postura subjetiva, provavelmente solipsista, do sujeito que decide. Permitir-se-ia a desconsideração de outros textos de norma e âmbitos normativos pertinentes a determinado caso concreto. Ora, é certo que a ordem jurídica exige atenção ao elemento sistemático de interpretação, bem como à busca de concordância prática nas situações de conflito entre direitos, princípios ou bens jurídicos.
Da inevitabilidade da ponderação
Daí que, em determinadas situações, a ponderação será inevitável. É certo que, acaso fosse adotado um conceito mais restrito de ponderação, estaríamos metodologicamente mais avançados. A ponderação não pode substituir as necessárias etapas do processo de interpretação/concretização. Mas ela bem pode significar, numa abordagem inicial e pragmática, a partir de Ulli Rühl, simplesmente… o contrário da subsunção[7], sempre que haja bens jurídicos colidentes.
Bem vistas as coisas, porém, o próprio legislador circunscreveu parcialmente o conceito, quando refere a necessidade de existência de um efetivo conflito entre normas (novamente, uma redação infeliz) para que se aplique a ponderação.
Tome-se como exemplo o caso Soraya.[8] Uma revista alemã sensacionalista, de grande circulação, inventou uma entrevista com a princesa Soraya, que se encontrava numa crise conjugal com o Xá Reza Pahlevi, do Irã. Uma entrevista inventada, porém, não se inclui no âmbito de proteção da liberdade de expressão, como definiu o Tribunal Constitucional Federal alemão. Não há, pois, nesse caso, com a devida vênia a Alexy e sua teoria dos direitos fundamentais como princípios, que se ponderar a liberdade de expressão contra a proteção à intimidade. Portanto, um trabalho prévio de interpretação/concretização entende já inexistente o conflito. Ora, eventual aplicação de ponderação numa suposta colisão entre direitos fundamentais; ou entre um bem jurídico constitucionalmente protegido e outro sem status constitucional, estará em contrariedade ao referido dispositivo, podendo a decisão ser cassada pela instância superior pela só utilização inadequada do instrumental.
Em suma, conquanto problemática, a referência do art. 489, § 2º representa sim um plus à exigência de fundamentação das decisões, concretiza-a. Num caso de verdadeira colisão, será preciso referir o porquê de não se proteger o outro direito em jogo.
Possível aproveitamento do novo dispositivo do CPC
É importante ter em mente que o instrumental da ponderação, se corretamente utilizado, com todos seus defeitos e exageros, permite um contraponto ao arbítrio judicial (implícita ou explicitamente) aceito pelo positivismo. Cria-se assim modelos e fórmulas que devem ser compatíveis com a previsibilidade necessária a todo sistema jurídico.
A referência a um procedimento de ponderação que especificamente exija do julgador justifique ele o “objeto e os critérios gerais” da ponderação, quer justamente afastar o decisionismo que tanto se tem visto por aqui.
No mesmo sentido, ao referir-se às premissas fáticas adotadas, exige-se que o julgador não deixe de lado as circunstâncias fáticas que, ao fim e ao cabo, contribuem para a formação da norma. Essas circunstâncias são parte do âmbito normativo, a que se refere Friedrich Müller. A formação da norma requer uma relação entre o texto e os fatos aos quais ele se aplica.
Não há dúvidas de que o dispositivo legal poderia ser melhor redigido. Já que pretendia legislar sobre o modo de decidir, caberia ao legislador exigir o esgotamento do trabalho de interpretação/concretização de cada direito ou bem jurídico especificamente considerado, antes de sugerir se proceda à ponderação.
Isso não significa, contudo, que se tenha adotado uma específica metodologia ou um específico jurista como referência para a utilização do instrumental da ponderação. Parece-nos, antes disso, que o legislador procurou reforçar as exigências constitucionalmente presentes de motivação das decisões judiciais, explicitada no inciso I do art. 489, mediante a referência a um instrumental que exige seja justificado o afastamento de um dos direitos ou bens jurídicos em jogo, quando da existência de uma colisão.
Para uma adequada ponderação
Como bem demonstram Ralph Christensen e Friedemann Vogel, em pesquisa conduzida perante a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, cada vez mais o conceito de ponderação tem servido para ressaltar o trabalho dogmático no âmbito específico de cada direito ou bem jurídico envolvido, à luz das circunstâncias apresentadas pelos casos concretos (“lokale Ausarbeitung der Semantik”, “semantische Elaboration im Einzelfall”)[9]. Quando muito, a jurisprudência desse Tribunal Constitucional indicia que, com a utilização dessa terminologia, procura-se distinguir entre um âmbito central e um âmbito periférico de cada um dos direitos ou bens jurídicos em jogo.
Feitas essas várias ressalvas, porém, e visando a tornar operacional, de modo adequado, a exigência da ponderação, seguem algumas sugestões que reputamos essenciais[10] para a utilização desse valioso, mas perigoso instrumental:
a) a ponderação não pode substituir as exigências e a etapa da interpretação;
b) não há qualquer padrão para a ponderação numa esfera inicial, bruta, descontextualizada. É simplesmente sem sentido ponderar a propriedade e a liberdade de informação, ou a liberdade de expressão e a honra, sem uma situação concreta, pois se terá apenas “uma palavra contra a outra”.
c) Não há ponderação entre direitos com nível diverso de hierarquia, salvo a hipótese de restrição por lei, constitucionalmente autorizada, do direito fundamental.
d) Uma perspectiva pragmática, como a adotada por Ulli Rühl exige o estabelecimento de um conceito normativo de ponderação. Assim, a ponderação apenas surgirá:
a) quando houver efetivamente uma colisão entre bens jurídicos;
b) nessa colisão, não se pondera um bem jurídico contra o outro, mas os fins por eles representados;
c) essa finalidade só é determinável a partir dos casos concretos, pois são eles que permitem as concretas modalidades de exercício do direito;
d) objetivo da ponderação será estabelecer regras de precedência, que permitirão uma subsunção apenas quando o novo caso tenha semelhança com a situação precedente (Situationsindex, engobando um Zeitindex), caso contrário as novas circunstâncias poderão exigir uma nova ponderação.
A partir desses cuidados, espera-se sirva a exigência de ponderação para a realização de um trabalho metódico compatível com um Estado Democrático de Direito, afastando-se o espectro do decisionismo, que tanto tem rondado nosso país.
[1] Assim com os artigos de Lênio Streck: Ponderação de normas no novo CPC? É o caos. Presidente Dilma, por favor, veta! http://www.conjur.com.br/2015-jan-08/senso-incomum-ponderacao-normas-cpc-caos-dilma-favor-veta Acesso em 7/4/2015; e de André Karam Trindade e Fausto Santos de Morais. Debate sobre ponderação no novo CPC e os perigos do decisionismo. http://www.conjur.com.br/2015-jan-10/diario-classe-debate-ponderacao-cpc-perigos-decisionismo Acesso em 7/4/2015.
[2] Vide nosso Métodos para a resolução do conflito entre direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[3] Em recente livro, Müller reforça suas críticas à ponderação, considerando-a na maioria das vezes despicienda. Nos casos em que deva ser utilizada, cabe ao operador distinguir efetivamente os elementos racionais daqueles irracionais na decisão. “Abwägung”: Herausforderung für eine Theorie der Praxis. Müller, Friedrich; Mastronardi, Philippe (organizadores) Berlin: Duncker & Humblot, 2014. Prefácio, p. 6-7.
[4] Vide Rühl, Ulli F. Tatsachen – Interpretationen – Wertungen. Grundfragen einer anwendungsorientierten Grundrechtsdogmatik der Meinungsfreiheit. Baden-Baden: Nomos Verlag, 1998.
[5] Métodos para a resolução do conflito entre direitos fundamentais, p. 140.
[6] Schmitt, Carl. La tiranía de los valores. Buenos Aires: Hydra, 2010, p. 131-132 e 138.
[7] Op. cit.. No Brasil, citamos tal passagem em nosso “Métodos…, p. 130.
[8] Soraya-Urteil. BVerfGE 34-269.
[9] Vogel, Friedemann; Christensen, Ralph. Die Sprache des Gesetzes ist nicht Eigentum der Juristen: von der Prinzipienspekulation zur empirischen Analyse der Abwägung, p. 87 e ss, em especial p. 129. In: “Abwägung”: Herausforderung für eine Theorie der Praxis. Müller, Friedrich; Mastronardi, Philippe (organizadores). Berlin: Duncker & Humblot, 2014.
[10] Vide as conclusões de nosso Liberdade de expressão e direito à honra: uma nova abordagem no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010.
Rodrigo Meyer Bornholdt é doutor em direito pela UFPR e sócio da Bornholdt Advogados
Revista Consultor Jurídico, 13 de junho de 2015, 7h30
http://www.conjur.com.br/2015-jun-13/rodrigo-bornholdt-ponderacao-cpc-nao-segue-metodo-especifico
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